Milei vai se render ao Brasil e à China, por Maria Luiza Falcão Silva

Os argentinos logo compreenderão que no jogo internacional não há espaço para as maluquices e criancices de Milei.

Ricardo Stuckert

Milei vai se render ao Brasil e à China

por Maria Luiza Falcão Silva

Entre os acontecimentos importantes para a América Latina nos anos 1990, última década do século passado, figurou a tentativa dos países latino-americanos de fortalecerem as relações entre si para melhor competirem no cenário econômico internacional. O principal acordo, assinado em 1991, envolvendo Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, criou o Mercado Comum do Sul (Mercosul). O resultado final pretendido era, tal como aconteceu na Europa criando a União Europeia (EU), a formação de uma união econômica plena, incluindo a união monetária. No caso da América Latina, o processo de integração econômica sugeria algo à época visto como inusitado para o campo progressista: os membros do MERCOSUL aceitavam a ideia, no que diz respeito à política monetária, de que as suas moedas, ou a moeda comum a ser criada, deveriam estar ligadas a uma moeda internacional, o dólar americano, num tipo de acordo de taxa fixa ou de um target zone. As economias mais fortes desse grupo sempre foram Brasil e Argentina. Presidia o Brasil Fernando Collor, o presidente que implantou no Brasil a cartilha do “Consenso de Washington” e a Argentina, o Carlos Menen que se dizia peronista, mas, como o Collor, mergulhou na arapuca neoliberal. A necessidade de integração da América do Sul saltava aos olhos no mundo neoliberal globalizado. Abrir as economias era palavra de ordem. Embora, competir com grandes conglomerados de países como os da União Europeia e os EUA, sugeria ser melhor fazer em grupo. Para além dos benefícios econômicos, a criação do Mercosul aliviou as desconfianças e as tensões diplomáticas entre o Brasil e os países platinos, em especial com a Argentina.

 Com relação ao futuro da integração latinoamericana, os analistas perguntavam: com um papel bastante diminuído das políticas monetárias dos países atreladas ao dólar, qual seria o papel apropriado das políticas fiscais nacionais dentro da união do Mercosul, num contexto em que o agrupamento era composto por países que apresentavam um histórico de deficits orçamentários e processos inflacionários crônicos? A preocupação era com os ajustes dolorosos e impopulares que esses países teriam que passar na transição para a unificação monetária. A experiência do Sistema Monetário Europeu (SME) mostrava quão complexos esses processos de integração monetária eram, e são hoje mais ainda, nas economias monetárias modernas globalizadas e financeirizadas.  

O presidente Fernando Henrique Cardoso não descartou a hipótese de o Brasil dolarizar a economia Brasileira. E a Argentina de fato dolarizou entre 1991 e 2001.

Estamos, três décadas depois, voltando aos mesmos temas num contexto bastante diferente em termos econômicos e geopolíticos. Temos novos poderosos  players  como, por exemplo, a República Popular da China, a Federação Russa, os tigres  asiáticos, a Índia, a Indonésia dentre outros países ditos emergentes ou integrantes do “Sul Global” que passaram por mudanças extraordinárias e se integraram, de forma ampliada e inexorável, à economia mundial. Em dezembro de 1991, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) deixou de existir, fragmentada entre 15 novos países.

A China, a partir de 1990, apresenta um crescimento estupendo impulsionado, em parte, pela forte desvalorização do yuan (entre1990 e 1994) e os ganhos de competitividade da indústria chinesa. A abertura econômica chinesa da segunda metade dos anos 1970 e políticas de reformas, modernizaram o gigante asiático tal que hoje é a segunda maior economia do mundo, em forte competição com a economia hegemônica e emissora da moeda internacional, os EUA. O yuan se fortalece e passa a fazer parte da cesta de moedas reserva do FMI.

A geopolítica então muda consideravelmente. Nesse contexto surgem os BRIC, criado em 2006 para reunir os principais países emergentes do mundo – Brasil, Rússia, índia e China. Na sua terceira cúpula, em 2011, a África do Sul aderiu formalmente ao grupo representando a África e reforçando a imagem do BRICS de representante do “Sul Global” e dando ao Brasil um novo espaço de atuação na economia mundial.

A entrada de novos players e, de forma mais contundente, da China, mudam totalmente as pautas do comércio internacional e dos investimentos na América Latina. China se impõe como grande parceiro comercial.

No caso do Brasil, observa-se uma mudança significativa no padrão de trocas do país com o resto do mundo na virada dos séculos. O valor das exportações de produtos da agropecuária mais os da indústria extrativa que representavam 20% do total das exportações, em 1997, aumentou deforma irreversível para 51% em 2021. Por outro lado, o valor das mercadorias provenientes da manufatura caiu de 80% para 49% do total das exportações, no mesmo período. No comércio com a China o fenômeno foi mais significativo.  As exportações de alimentos e extrativa mineral que representavam 28%, em 1989, passaram para 83%, em 2021. A participação das exportações de manufaturados encolheu, no mesmo período, de 72% em 1989 para 17% em 2021. O Brasil foi se consolidando como uma economia quase primário exportadora. 

Os investimentos chineses (IED) no Brasil, que praticamente começaram no primeiro governo do Presidente Lula, foram se multiplicando. Estudo do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC) mostra que os chineses investiram US$ 71,6 bilhões em 235 projetos no Brasil entre 2007 e 2022. Os setores que mais receberam IED foram: eletricidade, indústria de manufaturas, tecnologia da informação, agricultura, petróleo e serviços financeiros. Esses capitais ingressaram no Brasil majoritariamente via fusões e aquisições refletindo as estratégias do Estado chinês de expansão do seu capital para o resto do mundo em benefício do próprio crescimento chinês.  Em 2010, o Brasil foi destino de 25% de todas as aquisições chinesas no exterior, algo em torno de US$ 13 bilhões. Esses investimentos, na sua grande maioria foram liderados por gigantes estatais.

A partir de 2020, com a reviravolta na economia mundial vitimada pela epidemia da Covid-19, esses números arrefeceram. Depois vieram as guerras entre EUA/OTAN/Ucrânia e entre Israel e Palestina. A economia mundial desacelerou.   

A China continua batendo o crescimento de quase todos os países embora tenha reduzido à metade o seu ritmo de crescimento anterior. Voltou-se mais para dentro, impactando seus investimentos no mundo inteiro. A atitude hostil do governo brasileiro, sob o comando de Bolsonaro, certamente contribuiu para que o capital chinês se dirigisse mais para a Argentina, para o Mexico etc.  em detrimento do Brasil. Segundo dados de 2022 do CBEC, a Argentina liderou a atração dos aportes chineses na região no ano passado com negócios expressivos em especial na área da energia e recursos minerais como o lítio, por exemplo, fundamental para a indústria chinesa de baterias e automóveis elétricos. Os aportes das empresas chinesas no Brasil somaram US$ 1,3 bilhão em 2022.

O Brasil, na entrada da segunda década do século XXI, tornou-se uma economia quase primário-exportadora, importadora de bens industrializados e tecnologias, atraindo moderadamente capitais externos, liderados por empresas multinacionais de vários continentes, inclusive estatais chinesas.

A Argentina tem uma história extraordinária em que se registram avanços tremendos nos campos político e social, que diferenciavam a realidade do país da verificada no restante do continente. No final do século XIX e início do século XX a Argentina era, para muitos, um país que ocuparia na América do Sul a posição que os EUA desfrutavam na América do Norte. Com uma imigração muito forte de europeus e de mão de obra qualificada, a Argentina olhava para os vizinhos com ar de superioridade. Prevalecia uma distribuição de renda bem melhor do que no resto do continente, os trabalhadores eram politicamente engajados e sindicalizados.

Crises sucessivas do capitalismo dos anos 1970 e 1980, ditaduras e o mergulho e fracasso do neoliberalismo dos anos 1990 resultaram em perda de força da indústria argentina e retorno ao modelo movido por commodities sob a liderança das oligarquias agrárias, em geral nativas. Hoje, a Argentina é o maior exportador mundial de soja processada e grande exportador de milho, carne e derivados e trigo. Brasil, China e os EUA são seus principais parceiros.

Os problemas econômicos e sociais; crises sucessivas sob governos peronistas e não peronistas, liberais e sociais democratas; baixo crescimento, hiperinflação, choques externos levaram à moratória argentina de 2001,  impondo um calote de bilhões de dólares a credores internacionais. A busca pelos argentinos de padrões de vida europeus não se concretizou. A pobreza aumentou de forma tão significativa que mudou a estrutura de distribuição de renda em favor dos mais favorecidos causando convulsão social. Hoje, 40% dos argentinos são pobres. Verdadeira panela de pressão que explodiu com a eleição de Javier Milei, no desespero da população por um modelo que propusesse algo de novo. Mesmo que fossem desvarios tipo dolarização sem dólares, fechar o Banco Central dentre outras propostas descabidas.

Os fatos são: i. o Brasil é o principal parceiro comercial da Argentina, e a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil; ii. A China é a segunda maior economia do mundo e consumidora voraz de nossas commodities com seus 1,4 bilhão de habitantes. Os argentinos logo compreenderão que no jogo internacional não há espaço para as maluquices e criancices de Milei.

No início do terceiro governo Lula, em 2023, o Brasil retomou o protagonismo no Mercosul, desprestigiado pelo governante brasileiro anterior, e reintroduziu a ideia de moeda única entre os países do grupo. Usar o dólar como referência estava totalmente fora de cogitação. Não houve tempo suficiente para avançar nas tratativas porque as eleições argentinas de 2023 deram vitória, com ampla maioria, ao economista ultraliberal e performático Javier Milei.

 O governo de Milei que iniciará em 10 de dezembro, coloca na mesa, mais uma vez, a ideia de dolarização da economia argentina, sistema que havia prevalecido a partir de 1991 e colapsado em 2001. Dolarização é um compromisso de campanha. Contudo, faltam dólares na Argentina obstaculizando de forma insuperável colocar em prática o plano de Milei.  Há  muitos yuans nas reservas internacionais argentinas, algo em torno 80%. A China tem os dólares que a Argentina precisa, mais de US$ 3 trilhões em reservas internacionais. O cascateiro do Milei afirmou durante a campanha que não teria relações com países comunistas e em tom de ameaça disse que romperia relações com a China e Brasil.

Qual será a posição de Milei após assumir o governo? Parece-me que vai ficar mansinho em relação a China e o Brasil. Sucumbirá sem eles. Terá que baixar o tom com Lula e Xi Jinping. O Mercosul não está ameaçado, mas pode não avançar no próximo período. E o Brics seguirá seu rumo se expandindo agregando países como Árabia Saudita, Emirados Árabes, Egito, Irã e Etiópia onde petróleo, óleo e dólares não faltam, democracia sim. Haja pragmatismo. A entrada da Argentina era um desiderato de Lula, mas não dos demais parceiros.  Ficará a Argentina a ver navios e o Brasil como único representante de relevo da América Latina junto ao grupo.

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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